Olavo de Carvalho escreveu um texto, publicado em "O Globo", que eu considero importante para a compreensão da motivação do Blog. Ele conta a História da revolução de março de 1964. O texto mostra que tanto os Comunistas como a Extrema-direita Civil se preparavam para um levante e participaram dos fatos que levaram à revolução. Serve também como subsídio a ser usado pela Comissão da Verdade. Segue então o texto, boa leitura:
"Se houve na história da
América Latina um episódio sui generis, foi a Revolução de Março (ou, se
quiserem, o golpe de abril) de 1964. Numa década em que as guerrilhas e
atentados espoucavam por toda a parte, sequestros e bombas eram parte do
cotidiano e a ascensão do comunismo parecia irresistível, o maior esquema
revolucionário já montado pela esquerda neste continente foi desmantelado da
noite para o dia e sem qualquer derramamento de sangue.
O fato é tanto mais
inusitado quando se considera que os comunistas estavam fortemente encravados
na administração federal, que o presidente da república apoiava ostensivamente
a rebelião esquerdista no Exército e que em janeiro daquele ano Luis Carlos
Prestes, após relatar à alta liderança soviética o estado de coisas no Brasil,
voltara de Moscou com autorização para desencadear – por fim! – a guerra civil
no campo. Mais ainda, a extrema-direita civil chefiada pelos governadores
Adhemar de Barros de São Paulo, e Carlos Lacerda, da Guanabara, tinha montado
um imenso esquema paramilitar mais ou menos clandestino, que somava não menos
de 30 mil homens armados de helicópteros, bazucas e metralhadoras e dispostos a
opor à ousadia comunista uma reação violenta. Tudo estava, enfim, preparado
para um formidável banho de sangue.
Na noite de 31 de março
para 1º de abril, uma mobilização militar meio improvisada bloqueou ruas, pôs a
liderança esquerdista para correr e instaurou um novo regime num país de
dimensões continentais, sem que houvesse, na gigantesca operação, mais do que
duas vítimas: um estudante baleado na perna acidentalmente por um colega e o
líder comunista Gregório Bezerra, severamente maltratado por um grupo de
soldados no Recife. As lideranças esquerdistas, que até a véspera se gabavam de
seu respaldo militar, fugiram para dentro das embaixadas, enquanto a extrema-direita
civil, que acreditava ter chegado a sua vez de mandar no país, foi
cuidadosamente imobilizada pelo Governo Militar e acabou desaparecendo do
cenário político.
Qualquer pessoa no pleno
uso da razão percebe que houve aí um fenômeno estranhíssimo, que requer
investigação. Mas a bibliografia sobre o período, sendo de natureza
predominantemente revanchista e incriminatória, acaba por dissolver a
originalidade do episódio numa sopa reducionista onde tudo se resume aos
lugares comuns da “violência” e da “repressão”, incumbidos de caracterizar
magicamente uma etapa da história onde o sangue e a maldade pareceram bem menos
do que seria normal esperar naquelas circunstâncias.
Os 300 esquerdistas
mortos após o endurecimento repressivo com que os militares responderam à
reação terrorista da esquerda, em 68, representam uma taxa de violência bem
modesta para um país com mais de cem milhões de habitantes, principalmente se
comparada aos 17 mil dissidentes assassinados pelo regime cubano numa população
15 vezes menor. Com mais nitidez ainda, na nossa escala demográfica, os dois
mil prisioneiros políticos que habitaram nossos cárceres foram rigorosamente um
nada, em comparação aos cem mil que abarrotavam as cadeias daquela ilhota do
Caribe. É ridículo supor que, na época, a alternativa ao golpe militar fosse a
normalidade democrática. Essa alternativa não existia: a revolução destinada a
implantar aqui um regime de tipo fidelista com o apoio do Governo soviético e da
Conferencia Tricontinental de Havana já ia bem adiantada. Longe de se
caracterizar pela crueldade repressiva, a resposta militar brasileira, seja em
comparação com os demais golpes de direita na América Latina, seja com a
repressão cubana, se destacou pela brandura de sua conduta e por sua habilidade
de contornar com o mínimo de violência uma das situações mais explosivas já
verificadas na história deste continente.
No entanto, a
historiografia oficial – repetida ad nauseam pelos livros didáticos, pela TV e
pelos jornais – consagrou uma visão invertida e caricatural dos acontecimentos,
enfatizando à demência os feitos singulares de violência e omitindo
sistematicamente os números comparativos que mostrariam – sem abrandar, é
claro, a sua feiura moral – a sua perfeita inocuidade histórica.
Por uma coincidência das
mais irônicas, foi a própria brandura do Governo militar que permitiu a
entronização da mentira esquerdista como história oficial. Inutilizada para
qualquer ação armada, a esquerda se refugiou nas universidades, nos jornais e
no movimento editorial, instalado aí sua principal trincheira. O Governo,
influenciado pela teoria golberiniana da “panela de pressão”, que afirmava a
necessidade de uma válvula de escape para o ressentimento esquerdista, jamais
fez o mínimo esforço para desafiar a hegemonia da esquerda nos meios
intelectuais, considerados militarmente inofensivos numa época em que o Governo
ainda não tomara conhecimento da estratégia gramciana e não imaginava ações
esquerdistas se não de natureza insurrecional, leninista. Deixados à vontade no
seu feudo intelectual, os derrotados de 64 obtiveram assim uma vingança
literária, monopolizando a indústria das interpretações do fato consumado. E,
quando a ditadura se desfez por mero cansaço, a esquerda, intoxicada de
Gramsci, já tinha tomado consciência das vantagens políticas da hegemonia
cultural, e apegou-se com redobrada sanha ao seu monopólio do passado
histórico. É por isso que a literatura sobre o regime militar, em vez de se
tornar mais serena e objetiva com a passagem dos anos, tanto mais assume o tom
de polêmica e denúncia quanto mais os fatos se tornam distantes e os
personagens desaparecem nas brumas do tempo.
Mais irônico ainda é que
o ódio não se atenue nem mesmo hoje em dia, quando a esquerda, levada pelas
mudanças do cenário mundial, já se vem transformando rapidamente naquilo mesmo
que os militares brasileiros desejavam que ela fosse: uma esquerda
social-democrática parlamentar, à européia, desprovida de ambições
revolucionárias de estilo cubano. O discurso da esquerda atual coincide, em
gênero, número e grau, com o tipo de oposição que, na época, era não somente
consentido como incentivado pelos militares, que viam na militância
social-democrática uma alternativa saudável para a violência revolucionária.
Durante toda a história
da esquerda mundial, os comunistas votaram, a seus concorrentes, os
social-democratas, um ódio muito mais profundo do que a liberais e
capitalistas. Mas o tempo deu ao “renegado Kautsky” a vitória sobre a
truculência leninista. E, se os nossos militares tudo fizeram justamente para
apressar essa vitória, por que continuar a considerá-los fantasmas de um
passado tenebroso, em vez de reconhecer neles os precursores de um tempo que é
melhor para todos, inclusive para as esquerdas?
Para completar, muita
gente na própria esquerda já admitiu não apenas o caráter maligno e suicidário
da reação guerrilheira, mas a contribuição positiva do regime militar à
consolidação de uma economia voltada predominantemente para o mercado interno –
uma condição básica da soberania nacional. Tendo em vista o preço modesto que
esta nação pagou, em vidas humanas, para a eliminação daquele mal e a conquista
deste bem, não estaria na hora de repensar a Revolução de 64 e remover a pesada
crosta de slogans pejorativos que ainda encobre a sua realidade histórica?
Rio de Janeiro,
19/01/1999 em O Globo
Olavo de Carvalho
Filósofo
escritor"
"O preço da Liberdade é a eterna vigilância." Brig. Eduardo Gomes.
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