Anos
atrás, quando li “Radicais nas Universidades: Como a Política Corrompeu o
Ensino Superior nos Estados Unidos da América”, do sempre excelente Roger
Kimball, a narrativa de como as universidades americanas começaram a ser
convertidas ideologicamente a partir dos anos 1960 parecia também expor o
fenômeno de aparelhamento das universidades brasileiras no mesmo período. Lá e
aqui, as escolhas intelectuais e o direcionamento político, assim como a
definição ideológica de critérios acadêmicos, passaram a ditar as regras,
principalmente, nos departamentos de ciências humanas.
Aparelhar
as universidades brasileiras durante o regime militar foi uma estratégia genial
das esquerdas nativas. Poderiam de lá não apenas dominar a investigação e
orientar as perspectivas de análise da política e da economia, como também
formar as gerações de professores, intelectuais, artistas, políticos, que
transformariam a cultura e a mentalidade nacional. Bastavam construir um
programa curricular ideológico, baseado numa bibliografia que sustentasse esta
cosmovisão, e ensinar a gerações de alunos determinados fatos e abordagens como
sendo verdades universais e absolutas.
Livros,
autores e abordagens críticas a esta visão de mundo eram simplesmente atacados
sem sequer serem apresentados adequadamente. Uma simples consulta na
bibliografia dos cursos de humanas das universidades mostra claramente a
posição ideológica escolhida. Outra consulta, dessa vez no banco de teses da
principal universidade pública, a USP, pode ser uma experiência esclarecedora
no que tange à preferência acadêmica pelos autores e pensamento de esquerda.
Este
sistema se revelou tão eficaz que com o passar dos anos nem era mais preciso
dizer aos alunos o que se deveria ler ou pensar, e como reagir contra os
inimigos e quais teorias e ideologias deveriam ser combatidas e eliminadas.
Cumpria-se, assim, mais uma etapa da revolução cultural gramsciana de conquista
da hegemonia que permitiria a condução imperceptível ao poder.
Explica-se
também daí o fato muito comum de, por exemplo, professores e alunos dos cursos
de história, ciências sociais e políticas, economia, terem um discurso pronto
contra certas ideias e autores sem nunca terem lido uma linha sequer sobre os
objetos da crítica virulenta. E a postura agressiva igualmente se manifesta
para defender os ideólogos e intelectuais que expuseram e legitimaram essa
cosmovisão em diversas esferas do pensamento.
Num
artigo publicado em 1916, o intelectual comunista Antonio Gramsci escreveu que
a afirmação e difusão vigorosa e enérgica pelo partido do “princípio geral da
cultura, seja elementar, profissional ou superior” tinha sido mais eficiente
para a causa na Itália do que se tivesse definido um programa escolar. “Podemos
afirmar que a diminuição do analfabetismo na Itália não se deve tanto às leis
sobre o ensino obrigatório quanto à vida espiritual, ao sentimento de certas
determinações necessárias à vida interior, que a propaganda socialista soube
suscitar nos estratos proletários do povo italiano”. No Brasil, como na Itália,
as maiores vítimas intelectuais não foram tanto os proletários, que, afinal,
precisavam trabalhar e eram detestados pelas elites comunistas ao redor do
mundo, mas os estudantes.
A
situação, porém, começa a mudar. Já se verifica nos departamentos de humanas de
várias universidades grupos de professores e de alunos que de alguma forma
escaparam da doutrinação – nas escolas de ensino fundamental e médio a situação
é mais ou menos grave a depender da escola e do material didático utilizado, com
erros de apresentação e de análise histórica grosseiros, isto quando a
doutrinação não é explícita, como revela com frequência o site Escola sem
Partido. São grupos ainda minoritários, mas cada dia mais organizados e ativos.
Há
10 anos escrevi um texto dizendo que vivíamos no Brasil um período de transição
cujos resultados mais evidentes apareceriam entre 20 e 30 anos. Não era
qualquer exercício insensato de adivinhação ou uma aposta tola naquilo que era
uma mera e certamente otimista possibilidade futura. Era uma observação mais ou
menos convicta diante daquilo que eu via nitidamente em parte da minha geração
e numa parcela das gerações anteriores.
Os
assuntos, livros e autores lidos, discutidos e divulgados eram diferentes
daqueles que fizeram a cabeça e construíram a mentalidade dos que estavam no
poder político, acadêmico e cultural, e os que estavam em vias de conquistá-lo.
As vacas sagradas deixavam de ser sagradas; a uniformidade bibliográfica fora
desnudada; uma determinada mentalidade era exposta e combatida; a perspectiva
uníssona fora desafiada; começa a terminar, afinal, a solidão estéril do
pensamento único. E os primeiros efeitos desse momento de transição, acredito,
começam a aparecer. E não só no Brasil.
A
internet tem sido um instrumento valioso nessa mudança por permitir o acesso à
informação, a difusão de ideias e a formação de uma cada vez mais colaborativa
rede de contatos. Pequenas, médias e grandes editoras têm publicado livros que
anos atrás seriam impensáveis no mercado editorial brasileiro. E o têm feito
porque se formou um mercado para isso. Junto com os institutos liberais e
conservadores que foram criados nos últimos anos e têm desenvolvido um trabalho
fantástico, as ações individuais que têm desafiado o status quo possuem uma
vantajosa característica que pode ser classificada como alternativa, diria
mesmo reformadora, e não revolucionária. A vantagem da reforma sobre a
revolução é agir de forma quase silenciosa, sem estrondo, e assim dificultar, de
certa forma, a reação dos adversários. A outra, na esfera pública, é ter um
aspecto muito mais simpático por recusar a imposição violenta do que quer que
seja; a arma é a persuasão militante e eficaz.
Essa
faceta revolucionária seduziu e corrompeu o espírito juvenil de brasileiros de
diferentes classes sociais e idades ao longo de décadas. A juvenilidade
intelectual e moral são uma doença que abre rachaduras no indivíduo e permite a
entrada do recheio revolucionário. E, nesse sentido, não há melhor instrumento
para fazê-lo do que o ensino.
Outro
traço da mudança em curso foi a reação pública à morte do historiador inglês
Eric Hobsbawm. Até a década de 1990, o falecimento de Hobsbawm, convertido em
autor obrigatório nos cursos de história, seria uma mais uma oportunidade para
que o pensamento dominante celebrasse seu trabalho intelectual e a sua posição
política virtuosa em defesa do socialismo. No máximo, uma ou outra reação
localizada. Dessa vez, não foi o que aconteceu.
Nos
jornais, blogs e redes sociais foram vários os textos publicados com críticas
mais ou menos fundamentadas e sensatas, e mais ou menos agressivas, contra
Hobbsbawn e seus livros, e as
hagiografias e artigos mais ou menos sensatos que tentavam salvar a reputação
desse ícone da esquerda no âmbito da história e nos departamentos de
humanidades. A Veja, a revista de maior influência e circulação do país,
publicou um texto extremamente crítico sobre as escolhas política, moral e
intelectual do historiador, e o recorte ideológico que realizou em suas obras.
Ao
se darem conta de que a época do pensamento único, pelo menos daquele exposto
publicamente, já não mais existia, alguns reagiram furiosamente e o cadáver de
Hobsbawn foi agitado em praça pública como naqueles cortejos furiosos em que se
celebram os cadáveres dos terroristas islâmicos. Algumas foram embaraçosas,
como a nota divulgada pela Associação Nacional de História (ANPUH) contra outro
texto publicado no site da Veja. As críticas a Hobsbawm pareceram mais
ofensivas aos seus defensores do que se lhes fossem insultadas as respectivas
progenitoras.
O
caso do historiador inglês foi apenas mais um exemplo da histeria usada como
pretexto para atacar os alvos usuais: o neoliberalismo, o conservadorismo, a
mídia golpista, as elites e, mais recentemente, os institutos liberais. Em
suma, uma reação contra toda e qualquer manifestação desagradável ao status quo
cultural a que estavam acostumados e confortavelmente instalados.
Mudanças
culturais permitem que a sociedade percebam com mais nitidez a correção de
determinadas ideias e a falácia e perigo de suas concorrentes ou adversárias.
Num ambiente em que a pluralidade de ideias seja uma realidade cultural, a
existência e a defesa explícita do pensamento de esquerda é ótimo para expor
suas fragilidades e inconsistências diante dos pensamentos conservador e/ou
liberal.
Nesse
sentido, ocupar posições é fundamental, na cultura, na política, no mercado e
especialmente nas universidades públicas. Continua sendo absurdo pensar, por
exemplo, que cursos de economia de faculdades importantes tenham em seus
quadros professores antimercado.
Se
há atualmente um início de debate mais ou menos contundente, embora ainda
teoricamente pobre e frágil, entre conservadores e liberais, também este é um
sinal de mudança com possibilidade de amadurecimento para algo mais substantivo
no futuro. É preferível que haja um ambiente no qual liberais e conservadores
possam dialogar e discutir as suas diferentes concepções éticas, morais,
políticas e econômicas, e concorrerem politicamente, do que a atual dominação
cultural, política e econômica alicerçada numa ideologia extremamente maléfica
para a sociedade.
Este
não é um texto de fundo otimista. Sei bem que a dominação dessa ideologia e
mentalidade é um dado concreto e a sua influência ainda é gigantesca nas
diversas esferas de poder e camadas sociais. Se estamos mesmo no curso de um
processo de mudança, as poucas conquistas políticas e culturais registradas não
farão qualquer diferença se os seus fundamentos teóricos não forem
desenvolvidos, difundidos e protegidos contra os ataques sistemáticos dos
adversários e inimigos declarados da liberdade.
Bruno Garschagen
Jornalista
19 de outubro de 2012